Por Fred Santana
No auge da temporada das queimadas, entre junho e dezembro de 2024, as favelas e comunidades urbanas Conjunto Antônio Jorge, Conjunto João Pedro, Rabo da Cobra e Shan, no município de Boca do Acre, no sul do Amazonas, foram as mais impactadas pela poluição da fumaça da Amazônia, especificamente entre as populações em situação de vulnerabilidade social.
Juntas, essas quatro favelas registraram os piores índices de poluição na Amazônia causados pelas partículas tóxicas da fumaça, cientificamente chamadas de material particulado fino (PM2.5), no segundo semestre do ano passado. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), para evitar doenças respiratórias, a exposição diária ao PM2.5 não deve ultrapassar 15 µg/m³. No entanto, nessas áreas de Boca do Acre, a concentração de fumaça atingiu uma média de 113 µg/m³ em setembro do ano passado, valor 653% acima do considerado seguro.
Para entender a relação da fumaça com a poluição causada pelo material particulado fino na região, a InfoAmazonia coletou registros do serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF). Depois, identificou os territórios urbanos mais impactados a partir do cruzamento com os dados de favelas e comunidades urbanas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). — leia aqui a metodologia da análise.
Esta é a segunda reportagem da série “Invisíveis da Fumaça”, uma parceria entre a InfoAmazonia e O Vocativo. A análise exclusiva investigou a poluição do ar atribuível às queimadas históricas, que ocorreram entre julho e dezembro de 2024.
De 1º de julho a 31 de dezembro de 2024, a concentração média de poluição por fumaça nas favelas e comunidades urbanas de Boca do Acre foi de 40,2 µg/m³, índice 168% acima do limite recomendado pela OMS.
Localmente, a população se refere a essas quatro regiões apenas como “bairros” da cidade, embora a classificação de favelas e comunidades urbanas siga os critérios do IBGE. Na divisão geográfica adotada pelos moradores de Boca do Acre, a cidade é separada em duas áreas: a “cidade baixa”, que inclui os conjuntos Antônio Jorge, João Pedro e a região conhecida como Rabo da Cobra; e a “cidade alta”, onde fica Shan, uma área localizada em Walterlândia, a 7 km do centro.
Localizada na confluência dos rios Purus e Acre, a cidade de Boca do Acre tem uma população de 35.447 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2022. Lá, a maioria das casas são de palafita, erguidas em madeira numa altura que cabe até um carro para fugir das inundações em épocas de chuvas.
O levantamento também identificou outras favelas e comunidades urbanas na Amazônia onde a população foi severamente atingida pela fumaça na temporada: Guajará-Mirim, no interior de Rondônia, registrou 37 µg/m³, a segunda maior média da temporada. Em seguida, aparece Igarapé do São Francisco, em Rio Branco, no Acre, com 31 µg/m³.
O pico de fumaça nessas regiões de Boca do Acre foi no mês de setembro — mesmo período de alta na Amazônia, conforme o levantamento. No entanto, julho, agosto e outubro também registraram índices acima do limite considerado seguro pela OMS.
Moradores ouvidos pela reportagem relatam que toda a cidade enfrenta precariedade na infraestrutura, com ruas sem asfalto e falta de saneamento. Na parte urbana, 40% dos domicílios estão sujeitos a risco de inundação, conforme levantamento do Instituto Água e Saneamento, entidade que cobra mais acesso ao esgotamento sanitário no Brasil. Esses problemas são ainda mais evidentes nas quatro favelas e comunidades onde a concentração de fumaça foi mais alta.
‘Difícil viver com tanta fumaça’
Moradora do conjunto Antônio Jorge, umas das regiões mais afetadas pelo material particulado, a estudante de biologia Nayane Andrade de Souza não guarda boas lembranças de setembro de 2024, época em que a região estava tomada por fumaça.
“Foi uma situação muito ruim, agoniante”, contou. Ela lembra que o problema foi tão grave que a população local precisou recorrer ao uso de máscaras nos meses da temporada de queimadas, como nos tempos da pandemia de Covid-19.
“Para quem tinha sua rotina de caminhar à tarde foi difícil. Passear com as crianças era impossível. Para não inalar fumaça, saímos de máscara e, mesmo assim, era impossível não ser atingido. Tivemos falta de ar, olhos lacrimejando, tosse. A população teve que passar por isso”, lembra.
Nielly Vieira Mota, cabeleireira e moradora do mesmo bairro de Nayane, relatou à reportagem que a situação ficou insustentável em diversos momentos. “Foi muito ruim, principalmente pra quem sofre com falta de ar”, afirma. Ela lembra de ter sentido ardência nos olhos e dor de cabeça nos dias com maior intensidade de fumaça.
A cabeleireira é mãe de uma menina e afirma que as aulas foram canceladas por um mês, entre setembro e outubro de 2024, devido às condições atmosféricas. “As aulas passaram a ser online porque estava insuportável. Mesmo dentro de casa era difícil viver com tanta fumaça”.
A realidade nas quatros regiões de Boca do Acre foi ainda mais desconfortável para aqueles que não tinham acesso a ar-condicionado, relembra Nielly: “Quem tinha ar-condicionado podia se proteger um pouco, mas eu não tinha. Era em frente ao ventilador mesmo, mas o vento piorava a falta de ar”. Ela precisou interromper o trabalho em setembro porque não tinha condições de receber os clientes.
Impactos à saúde
O dentista José Carlos Lopes, que à época atendia pacientes na Unidade Básica de Saúde (UBS) Francisca Amélia, zona oeste de Boca do Acre, lembra de ter ouvido relatos de pessoas com problemas respiratórios. Atualmente, ele é o diretor do hospital estadual Dona Maria Geni, localizado na região.
“Na atenção básica, percebi, como cirurgião dentista, um aumento significativo dos atendimentos de doenças respiratórias, principalmente entre crianças e idosos. As aulas foram paralisadas, as atividades físicas ficaram de lado, começamos a sentir os efeitos do clima até no ambiente de trabalho, pois o ar-condicionado piorava tudo”, lembra Lopes.
Ele conta que, à época, principalmente em setembro, a fumaça deixava a cidade com pouca visibilidade. Devido ao calor, as pessoas precisavam de ambientes refrigerados, o que se somava ao problema.
“Sentimos bastante ardência nos olhos, problemas de rinite e outros respiratórios. Fora o desafio de viver em um ambiente insalubre, com pouca visibilidade e clima extremamente seco”, completa Lopes.
Martha Gomes, técnica de informática e moradora da região próxima a Shan, conta que o “principal sintoma foi dor de cabeça”. Ela também diz que as duas filhas, de 6 e 10 anos, ficaram cerca de duas semanas sem ir à escola. Nesse período, as aulas foram feitas por vídeo.
“Tivemos que ficar mais tempo em casa. Foi mais difícil principalmente para quem tem filhos porque muitas vezes não dava para eles irem à escola de tão irrespirável que estava o ar”, explica.
Na área onde Marta mora, as pessoas atingidas pela alta concentração de fumaça “não têm estrutura e as famílias realmente ficam num grau de vulnerabilidade bastante alto”, como explica Josimar Silva, diretor executivo do Instituto Amazoniar, uma iniciativa local do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). O bairro surgiu a partir de loteamento irregular.
“Não tem asfalto, são só as ruas de chão batido mesmo, tem uma escola próxima, mas é pequena”, diz, acrescentando que, como a região não tem transporte público, quem precisa “fazer uma locomoção mais rápida, tem que pegar mototáxi ou táxi”.
O pneumologista Mário Sérgio Monteiro Fonseca, que atua na unidade de clínica médica do Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas, que integra a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (HUGV-Ufam/Ebserh), explica quando uma pessoa saudável é exposta por um tempo prolongado cronicamente à fumaça, em níveis não recomendados como os registrados em Boca do Acre, corre o risco de evoluir com doenças crônicas do aparelho respiratório.
“Pode, por exemplo, evoluir com uma inflamação dos brônquios, que é a bronquite, isso no corpo mais leve. Mulheres gestantes saudáveis podem apresentar parto prematuro, com baixo peso da criança ao nascer. Então, a fumaça como um todo é lesiva, além de causar irritação ocular, irritação nasal, pode causar também dor de cabeça, são vários os fatores relacionados que podem levar a dano e prejuízo a uma pessoa saudável”, alerta.
Todos os moradores ouvidos na reportagem afirmam que a situação só melhorou quando começou o período de chuvas, em novembro.
A fumaça no organismo
As diretrizes da OMS sobre a exposição humana ao material particulado foram atualizadas em setembro de 2021. A organização alertou para os riscos dos danos que a poluição atmosférica causa à saúde humana, incentivando governos e comunidades a adotarem medidas para melhorar a qualidade do ar.
Desde a última atualização, em 2005, evidências científicas indicam que a poluição do ar está associada a uma variedade de problemas de saúde, incluindo doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais, doenças respiratórias e câncer de pulmão. A OMS estima que a exposição à poluição do ar cause aproximadamente 7 milhões de mortes prematuras anualmente.
O pneumologista Mário Sérgio ressalta que o material particulado no organismo torna as pessoas mais suscetíveis a processos inflamatórios.
“A fumaça é dividida em duas partes, existe o material particulado e o material que não é particulado. O material não particulado tem o formaldeído, tem o monóxido de carbono, tem as substâncias que a gente chama de aromáticas que são cancerígenas, e o material particulado que é a fuligem e outras substâncias, todos eles causam dano e processo inflamatório na traqueia, nos brônquios”, explicou.
Reforçando a explicação de Mário, o epidemiologista Jesem Orellana acrescenta que a multiplicação de focos de calor na Amazônia não causa apenas impacto ambiental, mas também agrava problemas de saúde que poderiam ser prevenidos.
“Milhares de atendimentos evitáveis se fazem necessários, consumindo recursos que poderiam estar sendo investidos no combate a doenças e desafios sanitários prioritários, especialmente junto a crianças, idosos e pessoas com comorbidades”, avalia Orellana também, que também é pesquisador e chefe do Laboratório de Modelagem em Estatística, Geoprocessamento e Epidemiologia (Legepi) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia.
Em casos de exposição a níveis de fumaça como os registrados em Boca do Acre, o epidemiologista orienta que, se possível, as pessoas usem máscaras reforçadas, como as PFF2 ou N95, que possuem filtros capazes de reter o material particulado.
“Os serviços de saúde, por sua vez, precisam alterar sua rotina, dando maior atenção para as ações de saúde na atenção primária à saúde, treinar pessoal, equipar as unidades de saúde e dar condições para que as pessoas afetadas pelo efeito tóxico da fumaça possam ser acompanhadas e tratadas da melhor forma possível, o que inclui planos de contingência realistas e formulados com meses de antecedência os períodos mais críticos”, sugere.
O que diz o governo do Amazonas
Apesar da fumaça das queimadas ter sido intensa no ano de 2023 com indicadores de que a crise climática poderia se repetir em 2024, o governo do Amazonas demorou a se posicionar publicamente com orientações sobre o problema. Um comunicado explicativo só foi divulgado para a imprensa e publicado em sites oficiais do governoem 18 de setembro de 2024, na segunda quinzena do pico da exposição.
Em nota enviada para a reportagem, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) afirmou que, em 2024, viabilizou a aquisição de sensores de monitoramento da qualidade do ar para todos os 62 municípios do Amazonas, dos quais 49 já foram instalados, com apoio da Defesa Civil do Amazonas. De acordo com a Sema, conforme os resultados de concentração de material particulado em suspensão, a secretaria entra em contato com a Defesa Civil, para articulações junto à Secretaria de Estado em Saúde.
Em 2024, segundo a Sema, foram realizadas 196 prisões relacionadas às queimadas. Também foram embargados 24 mil hectares e aplicados R$ 214 milhões em multas. Por fim, 433 autos de infração foram expedidos. O Corpo de Bombeiros afirma ter combatido 2.575 focos de calor no Amazonas no ano passado, incluindo Boca do Acre.
Embora o problema tenha ocorrido em todo segundo semestre do ano passado, apenas em janeiro deste ano, o governador Wilson Lima (UB) tornou permanente o Comitê de Enfrentamento a Eventos Climáticos e Ambientais no Amazonas. Além disso, apenas agora, segundo a Sema, os órgãos estaduais se reuniram para discutir a elaboração do Plano Estadual de Mudanças Climáticas, além do Plano de Emissão Atmosférica e Gestão da Qualidade do ar.
Questionada ao longo das últimas duas semanas sobre ações de preventivas ou mitigadoras junto à população, a Secretaria de Estado em Saúde não enviou resposta.
Procurados, o ex-prefeito de Boca do Acre entre os anos de 2021 e 2024, José Maria Silva da Cruz (PP), conhecido como Zeca Cruz, não quis responder às perguntas. Ele repassou contatos de ex-integrantes da prefeitura durante a gestão, os ex-secretários de saúde, Manuel Barbosa e meio ambiente, Antônio Jony da Costa Noronha, mas eles não retornaram as perguntas da reportagem.
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Esta reportagem é uma parceria com o Vocativo e faz parte daRede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. Foi produzida naUnidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com apoio do Instituto Serrapilheira.